quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

o homem que morava numa caixa de fósforos

estava palestrando para seres inanimados numa manhã chuvosa. era uma garotinha solitária. discorria sobre leguminosas e hortaliças em plena dispensa, onde mantimentos não-perecíveis encontravam-se organizadamente dispostos em prateleiras. durante todo seu discurso manteve os olhos fixados num casal de saleiros 'cisne', daqueles que têm dois tipos distintos, cada qual caracterizando um gênero. a fêmea havia perdido seu chapéu e parecia um ovo cozido de padaria com um galo na cabeça. ao lado estava 'gina', a assustadora e sorridente mulher dos palitos de dente.

ela havia se cansado dos humanos. pareciam não compreender suas palavras, que seguiam padrões de pensamento muito peculiares. passou a dialogar com o reino animal, vegetal e depois mineral, até chegar por fim aos seres de reinos não reconhecidos pela ciência.

eis que, então, a jovem moçoila conheceu nildo, um diminuto homem que morava numa caixa de fósforos. tinha trinta e cinco anos e havia encolhido devido a uma doença degenerativa rara, que começara a se manifestar por volta de seus treze anos. de um metro e sessenta e três, atingira a incrível marca de dois centímetros. seu destino estava quase traçado: morreria de pequeneza, caso não fosse acidentalmente esmagado mundo afora.

se afeiçoaram um pelo outro imediatamente. a solidão de um sussurrara à solidão do outro. o primeiro encontro ocorrera nesta mesma dispensa, pois que a diminuta moradia de nildo localizava-se próxima aos saleiros e a garotinha o avistou enquanto proferia algumas de suas idéias sobre tubérculos. nildo se escondera, temendo ter sua existência findada pela gigantesca criança.

ela garantiu que estava em missão de paz e pediu para que o pequenino se mostrasse em todo seu esplendor. um tanto acanhado, o minúsculo homem deu as caras e logo iniciaram uma conversação que durou cerca de seis horas ininterruptas, onde descobriram que, a despeito da diferença de estatura e idade, compartilhavam de inúmeros interesses. ela achou deveras satisfatório saber que outra pessoa também discordava veementemente da arbitrariedade das linhas imaginárias no atlas e juntos pensaram em criar um novo mapa-mundi, sob a ditadura de suas próprias vontades.

nildo contou sobre sua condição e a menina sentiu um embrulho nas vísceras, percebendo que o tempo de vida do amigo seria tão breve quanto sua ínfima estatura. seu coraçãozinho enchera-se de tristeza, imaginando que teriam pouco mais que dois anos para cultivar a amizade, até que o corpo de nildo desaparecesse.

a habitação do pequeno foi logo transferida para o quarto da garotinha, situando-se no criado-mudo, nas vizinhanças de um rádio-relógio em forma de hambúrguer e de um abajur furta-cor.

a amizade entre eles se consolidava dia após dia e todos a julgavam insana, inclusive seus pais, por parecer desenvolver conversas consigo mesma por horas a fio.

alguns meses depois, nildo foi se tornando tão pequenino e a distância entre eles foi crescendo tanto, que a jovem o convidou para residir em seu umbigo. pensou que esta cavidade corpórea poderia oferecer todo o aconchego e calor humano de que necessitava, já que se tornava cada dia mais frágil.

todas as manhãs ela o chamava e ele, em seu reduzido pijama, se apresentava todo garboso para o café da manhã. de fato nildo era um sujeito elegante, não importava a ocasião. ele se sentava nas redondezas dos pratos e talheres de enormes proporções e se alimentava das migalhas sumárias que ela cuidadosamente preparava, enquanto desenrolavam sobre algum assunto trivial, certamente considerado enfadonho pela maioria dos seres que respiram, mas tido como o elixir da vida por ambos.

até que numa manhã qualquer ela o chamou, mas nildo não veio. repetidas vezes pronunciou seu nome sem nenhum retorno. sabia o significado do silêncio. seu coração gelou. com afinco e melancolia olhou para dentro de seu próprio umbigo. o corpo de seu companheiro dissipara-se para todo o sempre, restando apenas o menor pijama da história da humanidade. e nildo, pequeno em tamanho, porém grande em caráter, tornara-se para a garota aquilo que ela cultivaria até o fim de sua vida como o seu bem mais precioso: a flunfa mais frondosa de que já se teve registro.


4 comentários:

marinalice disse...

aplausos

ana disse...

nossa juju, superou-se... amei!

Haku disse...

estou torcendo para que, com a evolução da nanotecnologia, ainda haja tempo de achar o nildo no umbigo da menina...

Unknown disse...

Tadim do Nildo