domingo, 23 de março de 2008

o livro dos seres imaginários (borges)

o catóblepa, um búfalo negro com uma cabeça de porco que cai até o chão, discorrendo sobre si mesmo:

"'corpulento, melancólico, fosco, não faço outra coisa senão sentir sob o ventre o calor do lodo. meu crânio é tão pesado que não consigo levantá-lo. enrolo-o em torno de mim, lentamente; e, com as mandíbulas entreabertas, arranco com a língua as ervas venenosas umedecidas por meu hálito. uma vez devorei minhas próprias patas sem perceber.'"

eis uma criatura digna.

sábado, 22 de março de 2008

pensamentos de um sábado de aleluia

tenho nada mais que um botão velho no bolso. há tempos que não sei o que é o amor. minha última paixão me trocou, meu vestido mais bonito foi furado por um cigarro e minha família viajou e me deixou à mercê de bandidos picaretas em nova iorque.

restou-me coisa alguma afora a melancolia. e também um criado-mudo, já que contratei um mordomo sem aptidão para fala, que cuida com bastante afinco e elegância do meu apartamento de treze metros quadrados e sem mobília.

não saio de casa há quatro meses, pois os contatos humanos têm me trazido pouco prazer. por vezes me sinto insignificante. penso nos erros do passado e desisto da prática da tolice. atualmente apenas realizo o ócio e a sobriedade.

os amigos me abandonaram. comprei um periquito na semana passada, mas ele morreu de gripe aviária. suas penas arrepiaram-se e por cinco dias tomou a forma arredondada de um repolho, até que entrou em coma e partiu dessa para uma melhor.

minha vida faz tanto sentido quanto uma ovelha lasciva em trajes sensuais sumários, que ouve jazz e come macadâmia.

queria partir para algum lugar remoto, onde não fosse de domínio público que faço uso de perucas para esconder meu crânio pelado e que um dos meus dentes dianteiros é uma prótese.

sempre quis ser aquela que vai embora, mas eu fico. persistentemente eu fico...

quarta-feira, 19 de março de 2008

um feriado romântico

uma feminista militante do clubinho do livro pergunta: "quem teria sido a verdadeira paixão de cristo?"

terça-feira, 18 de março de 2008

quando ninguém estava olhando

uma mulher coça as costas com uma caneta. encontra-se em local público, mas parece não se importar com a presença de terceiros. contorce a face e entorta-se ao máximo de sua elasticidade na tentativa de atingir o ponto crucial, mas o comichão persiste.

anda mais alguns metros na direção de uma parede cor de mostarda com pátina. começa a esfregar seu dorso grosseiramente contra a dita, assemelhando-se a um cão sarnento em desespero. pratica este ato com semblante de alívio. os olhinhos pequenos e tolos lacrimejam em espasmos involuntários, até que o movimento cessa. desliza pela parede e leva seu lombo ao chão.

ali ela fica, alheia ao mundo à sua volta. sabia que havia executado algo excepcional, pois não é todo dia que dá-se fim à pruridos ancestrais. havia silenciado cinco gerações passadas e quiça uma futura.

e todos os dias feitos heróicos são ignorados...


terça-feira, 4 de março de 2008

quando as artérias dramáticas sobrepõem-se às veias cômicas

um dia escuro, daqueles em que nada faz muito sentido. a garganta dói um pouco e de resto, apatia. na caixa de e-mails um spam de uma fancha feminista militante sobre o dia internacional das mulheres. num dia normal acharia graça, mas hoje meus dentes não estão em exposição.

só uma impressão ainda sorumbática de que tudo vai ficar bem. mudanças são boas no fim das contas, fazer escolhas faz parte da vida, yada yada yada. mas agora fico com as incertezas, com o sentido misterioso das coisas que ainda não aconteceram e com o medo de deixar para trás aquilo que de tão passado, já se decompôs e foi devorado por vermes famintos.

e sigo com a coragem dos tolos. há que se possuir uma certa imbecilidade para aceitar riscos. por mais um dia a dinastia do terceiro mamilo reina sobre os homens, pois que a mágica do extraordinário deve prevalecer.

o mundo é mágico, de fato.